quinta-feira, 13 de março de 2014

Do segundo sexo

A segunda cena mais bonita relacionada a gêneros que já presenciei foi aos dezoito anos, numa classe de Sociologia Geral. Quando o Prof. Amaro Braga disse a um calouro que se ele continuasse a repetir que há “diferenças biológicas entre homens e mulheres que impedem um gênero ou outro de exercer certas profissões” ele não precisaria retornar às aulas, pois estaria automaticamente reprovado.
A primeira foi quando, estando ocupada, meu irmão mais velho pediu que eu fizesse o jantar e meu irmão mais novo, de sete anos, perguntou “por quê? Porque ela é mulher? Ou você não tem mão? É porque não sabe cozinhar? Devia aprender. Comer é uma ‘necessidade básica’”. E eu vi que ele era capaz de surpreender com muito mais do que novos vocábulos bem-colocados.
Me deixa curiosa quando dizem “pra que um 8 de Março? Pra que um dia das mulheres? Por acaso tem dia dos homens?”. Como a clássica “pra que um dia da consciência negra? Por acaso tem dia da consciência branca?”. Uma dessas ocasiões em que você precisa respirar muito fundo e dizer com a paciência de quem explica a uma criança por que não se deve atravessar a rua sem olhar para os dois lados: “opressão, militância, mortes, minorias, machismo? Algum dia, você ouviu falar?”.
Eu ainda estava na terceira ou quarta série do ensino fundamental quando tive de fazer um seminário sobre as mulheres da fábrica de 1857, e recuso a crer que alguém que haja passado por uma escola também não o tenha feito em algum momento. Recuso crer até mesmo que alguém que tenha ouvidos não tenha escutado de algum conhecido sobre tal coletivo homicídio e suas causas. Que qualquer pessoa, estando numa universidade, independente da área, não tenha trombado no fato histórico ou em algum texto de Simone de Beauvoir. Que, tendo acesso a internet, ainda não tenha se deparado com uma página feminista.
Igualmente recorrente ao “pra que um 8 de Março?” é o famoso “não sou feminista nem machista, é tudo tolice”. Dos muito espertos que não sabem o que são antônimos, misoginia ou misandria, muito menos femismo (oh, yeah, sem o “in” depois daquele m). Dos muito espertos que acreditam de olhos bem fechadinhos que feministas odeiam homens, ou que “essas mulheres ficam querendo provar que valem tanto quanto nós e tentam roubar nossos cargos e salários” - porque uma mulher não pode querer um melhor salário ou um cargo por si, ela quer porque, batendo o pé nº 35 no chão, aquele é um “cargo de homem”. É claro.
É muito atrevimento prum segundo sexo só.
De ver homens se sentirem “oprimidos” porque mulheres “resolveram” achar que cantadas são algo ofensivo. Porque verdadeira opressão não é ouvir aos dezesseis anos, de um total desconhecido, que esses tais dezesseis anos foram “muito bem vividos”.
De aturar, todos os dias, repetirem, como quem segura um relógio e balança numa tentativa de efeito hipnótico, que não há machismo.
Não há machismo, não.
Quando garotas de oito anos preferem o suicídio ao casamento obrigatório, no Oriente Médio, e uma mulher sofre estupro coletivo da comunidade em que vive porque engravidou de um estuprador. Quando é preciso ouvir dos jornais nacionais sobre o suposto, sempre suposto, estupro daquela garota que saiu do baile funk. Que, afinal, sempre alguém sussurra, “baile funk não é lugar de mulher direita”. Que ainda é preciso ouvir que há tipos de mulher: mulher de respeito, mulher pra casar, mulher pra curtir, mulher pra pegar, mulher pra só olhar e zoar porque, afinal, “mulher gorda é sempre engraçada”.
"Aquela saia? Muito curta. Muito longa. Ela não tem corpo pra isso. Ela tem corpo demais. Tá pedindo pra nenhum homem a olhar. Tá pedindo pra ser comida."
A frase mais desprezível que ouvi nos últimos dias é de uma senhora não Diante, mas sentada no Trono e dizendo “a filha daquele irmão passou em primeiro lugar em Medicina no vestibular, mas não sabe pregar um botão!”. Sem levar em conta a sabedoria concorrente que ouvi, hoje, 7 de Março, de um policial: “uma chave que abre muitas fechaduras é uma chave-mestra, uma fechadura que abre pra todas as chaves não tem nada de especial”. Ele havia dito, antes, que as mesmas mulheres que pegaram dez homens no carnaval, agora vão correr atrás de namorado e postar frases de amor em rede social. “Quer pagar de puta? Pague, mas aceite que nenhum homem irá te valorizar. Quer ser santa? Seja santa realmente e terá vários homens atrás de você.”
É impossível que apenas eu, lendo aquilo, tenha sentido vontade de vomitar.
O que eu cresci ouvindo de vários lados é que “homem não gosta de mulher rodada ou muito atrevida”. O que eu peço, crescida, é “senhor, piedade pra essa gente careta e covarde”.
Eu tenho um sinal de nascença acima da pálpebra esquerda. Minha avó tem um sinal de sangue no olho esquerdo que, palavras dela, foi “herança do seu avô”.
Claudia
PS: Lugar de mulher não é no tanque. De lavar roupa ou de guerra. Lugar de mulher é onde ela quiser estar. Eu escolhi um laboratório químico acadêmico. Ingrid escolheu desenhar e costurar, lá no Paraná.


Claudia Calado

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